segunda-feira, 23 de abril de 2012
ENTREVISTA COM GLAUCO MATTOSO
EM BREVE,NO MÊS DE MAIO, O SITE TELESCOPIO ESTARÁ COMEMORANDO 13 ANOS NO AR, E NA SEQUENCIA DE ENTREVISTAS, DESTACAMOS O ESCRITOR E AMIGO GLAUCO MATTOSO, UM DOS POETAS MALDITOS ESSENCIAS PARA A CULTURA BRASILEIRA:
[1] GLAUCO, ser um artista maldito pode ser uma benção,visto que a
chance para o artista conquistar mais liberdade perante uma editora
pequena é maior, além do que, o maldito é boicotado em sua cidade e/ou
país,como eu sou aqui em Araçatuba - mas por outro lado,conquistamos
mais credibilidade, não interferência de terceiros em nossa obra, e
coragem para suportar o reacionarismo das pseudo-estrelas literárias em
nossas cidades ,ainda tão provincianas. O que você me diz?
GM - Aqui temos dois aspectos a considerar. Do poncto de vista
collectivo, não importa muito si o escriptor marginal (ou underground,
como se diz internacionalmente) está na capital ou no interior, pois o
boycotte é practicamente o mesmo. A unica differença é que na capital,
em vez duma só panellinha, são innumeras panellinhas e panellonas,
disputando mercado e midia, ou, por outra, viabilidade e visibilidade.
Costumo brincar que, como auctor cego, não tenho que me preoccupar com a
visibilidade. Quanto à viabilidade commercial, mesmo que minha obra
possa attender a um nicho qualitativo especifico, ainda assim eu
soffreria pela barreira quantitativa, ja que, só de sonetos, passo dos
cinco mil. Nesse poncto entra a solução individual, que depende do que
temos à mão. Você tem a ferramenta digital e o cyberespaço. Eu tenho o
computador fallante mas não tenho accesso via mouse, não posso navegar
nem postar, apenas teclo e troco emails. Dependo dos outros para manter
um site e das pequenas editoras para divulgar a obra parcelladamente, em
livro. Nem que eu assignasse contracto com dez editoras commerciaes
daria para publicar toda a obra em pouco tempo. O remedio é continuar
marginal, seja por opção, seja por necessidade, ainda que um ou outro
livro saia por editora maior. Mas você tem razão: sem estarmos presos
aos interesses lucrativos duma unica empresa, a liberdade é maior, tanto
thematica quanto estylistica ou em termos de genero litterario.
[2] Como você sentiu a obra do Roberto Piva,como você sentiu a morte
dele, que recordações você guardou dele?
GM - Acho que resumi tudo no soneto que lhe dediquei por occasião do
fallecimento. Elle me precedeu em termos de geração, começou sessentista
emquanto eu comecei septentista, mas nunca disputamos o mesmo espaço,
principalmente depois que adoptei a forma fixa do soneto e da decima.
Mas tinhamos muito em commum, na visão dionysiaca e mystica da
demonologia lyrica, nas predilecções eroticas e litterarias, na
convivencia com o submundo metropolitano da Paulicéa. Depois que fiquei
cego perdi contacto com quasi todos os amigos, mas nos telephonavamos de
vez em quando, continuavamos trocando confidencias intimas e fofocas
venenosas sobre a esnobe scena litteraria official... Abaixo estou
collando o soneto pentastrophico que compuz.
PROFANO PROPHETA [3390]
Esperma de palavra se deriva
em fertil mente e em lyra creativa.
Semantica ou syntaxe, só, não basta
nem são imprescindiveis metro e rima
si a escripta surprehende e a penna é vasta.
Conheço um tal poeta e nelle vejo
de olympicas metropoles o exgotto,
o gozo azul de impubere garoto,
o samba em harpa e o rock em realejo.
É magico e sublime o pederasta
que do maldicto mytho se approxima
e do castiço canone se afasta.
No orgasmo oral dos jovens está viva
a chamma que deixou Roberto Piva.
[3] Você parece dar mais ênfase aos recursos mnemônicos, provocando uma
implosão profunda dentro das regras literárias, imprimindo ritmo,
métrica, valorizando a oralidade da poesia, bem ao estilo do cordel,da
poesia beat, isso misturado a uma temática suja que ainda agride os
ouvidos dos ouvintes mais despreparados -lembro-me de ler alguns sonetos
seus em minha cidade e o público enrubescer! Será que o público continua
ainda adormecido, não obstante o avanço das vanguardas no início do
século 20? Glauco,acho o leitor,o público brasileiro muito apático.
GM - Quanto ao potencial mnemonico das formas fixas, metrificadas,
rimadas e rhythmadas, você lembrou bem, que ellas teem tradição oral e
participam da musicalidade da poesia na sua origem. Brinco ainda que, si
um cego não precisa da visibilidade, tambem pode dispensar a visualidade
da poesia e priorizar a oralidade. Na phase em que enxerguei fui adepto
dum concretismo, digamos, dactylograffitado, e mantenho a estima devida
ao Augusto de Campos, um dos meus incentivadores. Mas, na cegueira,
reconheci que o chordelismo e o sonetismo me ajudaram a reencontrar
minha vocação poetica, e que a memorização depende muito da regularidade
metrica, rimatica e rhythmica. Eu não chegaria aos milhares de sonetos
si não adoptasse formatos rigorosos. Quanto à thematica, ahi é que a
porca torce o rabo, pois, como você lembrou, eu sujei e violentei muito
a esthetica lyrica, coisa que causa ainda algum enrubescimento, mesmo
aqui em Sampa.
[4] O que você costuma ouvir, quais seus discos/cds de cabeceira,aqueles
aos quais você sempre retorna?
GM - Ainda sou sessentista em materia de rock, pois foi a trilha sonora
da minha adolescencia. Continuo beatlemaniaco e reouço bandas da epocha,
como Byrds, Stones, Creedence, Who, Kinks. Mas sou bem mais eclectico na
hora de diversificar. Vou do erudito (como o barroco de Scarlatti) à
Velha Guarda brasileira (Noel, Lamartine, entre os compositores; Carmen
Miranda, Mario Reis, entre os interpretes)... Só me differencio de
muitos collegas quanto a algumas bandas de publico restricto, como os
Macc Lads, inglezes campeões da bocca suja e da incorrecção politica, ou
os Pharaohs do Sam the Sham, que continuaram juvenilmente dansantes
emquanto os psychodelicos sophisticavam seus arranjos. No rock
brasileiro, ainda acho que os Mutantes não foram superados, siquer por
Cazuza ou Renato Russo...
[5] Por que você adotou "o systema etymologico vigente desde a epocha
classica até a decada de 1940", contrariando a ortografia oficial? o que
te levou a isso?
GM - Não foi uma attitude repentina, apenas para reagir às successivas
reformas que estão desfigurando a forma escripta do idioma. Nem foi para
homenagear os sonetistas classicos que escreviam nessa orthographia. Na
verdade, eu gosto desse systema (vigente no francez e no inglez) desde
que me formei bibliothecario (graduei-me em 1972) e desde que lancei, em
1977, meu fanzine anarcholitterario, o JORNAL DOBRABIL. A explicação,
alem do merito esthetico e historico, é a propria contestação anarchica:
quando todos seguem o systema official, o rebelde adopta aquelle que foi
abolido. Durante decadas deixei de seguir a etymologia por causa das
editoras commerciaes e da midia, que me impunham a obrigatoriedade. Mas,
depois dos 60 annos e depois da ultima estupidez que fizeram com os
hyphens, vi que não valia a pena ficar pagando mico a esses
revisionistas incoherentes. Si quizer, lhe offereço o artigo que escrevi
sobre isso para a revista LINGUA PORTUGUEZA...
[6] Glauco você me lembra Glauber Rocha,pela sua inclinação aos
paradoxos, o gosto pela antítese, o oxímoro -porque o cineasta dizia que
o artista é contraditório.Temos os dois lados da moeda em nossas
vísceras, uma coisa também meio búdica, zen, que se completam não é?
você com a cegueira pôde encontrar este complemento zen? é uma percepção
que lhe permite viajar pelo universo destas contradições?
GM - Curioso é que Glauber tambem tinha sua propria orthographia, mas
não systematica como a que uso. Sim, concordo com essa concepção ambigua
da natureza humana, opposta ao manicheismo das religiões. Achei no
mysticismo o respaldo transcendental para meu papel como poeta cego (a
exemplo de Homero, Milton, Borges ou Aderaldo), mas sobretudo para a
comprehensão do meu sadomasochismo, que é uma synthese de oppostos, uma
verdadeira monada yin-yang. Nesse poncto não sou apenas buddhico nem
bacchico, sou barroco, ou neobarroco, ou posbarroco. Uso o neologismo
BARROCKISTA, parallelamente ao de PORNOSIANO.
[7] Ainda neste contexto das contradições, penso que o soneto traz
consigo um desafio a ser realizado pelo autor, que deverá conquistar uma
espécie de liberdade vocabular e criativa em contraste com uma camisa de
força proveniente de sua estrutura,não é assim?
GM - Exactamente. Como as radicaes acrobacias dos motocyclistas dentro
do globo da morte... (risos)
[8] É verdade que Millor Fernandes tenha te influenciado? Como foi? Você
chegou a conhecê-lo pessoalmente? eu gostei muito do poder de fogo
crítico do irmão dele, o Hélio Fernandes.
GM - Sim. Meus maiores incentivadores foram dois de meus referenciaes
artisticos, Augusto de Campos e Millor, que prefaciaram e posfaciaram
meu JORNAL DOBRABIL em livro. Troquei correspondencia e telephonemas com
Millor e, quando enxergava, visitei-o no Rio. Elle sempre foi affectuoso
commigo, typo um pae litterario. Me levou para almoçar na churrascaria
preferida, me apresentou a Cora Rónai, fez a ponte com Fernanda
Montenegro e com o PASQUIM, alem de collaborar no meu zine. Tambem fiz
um soneto para elle, que collo abaixo.
DOIS PHANTASMAS NA RISADARIA [5198]
Millor, meu Deus, morreu! Me telephona
alguem, quer que eu deponha. Eu argumento
que egual foi a Voltaire, porem lamento
não ser o philosophico o que abona.
Tambem com Chico Anysio assim funcciona:
do lado litterario, do talento
de sabio, de humanista, bem mais lento
é o reconhecimento que sancciona.
Drummond, na academia, ja rendeu
milhões de theses. Justo é, reconheço,
mas nobre foi Drummond? Millor plebeu?
Preoccupa-me o demerito, esse preço
que paga um humorista. Tambem eu
sou victima e discipulo... mas cresço!
[9] Glauco, você parece rir da sua própria cegueira física, assim como
Ray Charles parecia rir de tudo,em seu piano divino. Qual a importância
do HUMOR em sua obra? lembro-me de uma passagem dos "Sofrimentos de
Werther" em que Goethe descrevia a necessidade do bom humor.
GM - Lembre-se que o humor está na raiz dos principaes classicos. De
Marcial a Aretino, de Shakespeare a Cervantes, de Gregorio a Bocage.
Lembre-se tambem de que o fescennino nada mais é que uma sommatoria de
comico e erotico. Mesmo que nem sempre a litteratura privilegie o
tragicomico, o heroicomico ou o humor negro. Digamos que rir da propria
desgraça faz parte do masochismo e que rir da desgraça alheia faz parte
do sadismo... (risos)
/// [22/4/2012]
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