MANOEL DE
BARROS: O ENCONTRO, A CARTA E O FILME
Raquel Naveira
“Não seria capaz de reconhecer um
rouxinol...
Será um pássaro roxo?
Terá na garganta um sol?
Raquel Naveira
SABIÁ COM TREVAS IX
“O poema é antes de tudo um
inutensílio.”
Manoel de Barros
Aos vinte
anos, comecei a publicar meus poemas no jornal Correio do Estado de
Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Com coragem, entrei na sala do Professor
Barbosa, proprietário do jornal, mostrei-lhe alguns poemas datilografados,
li-os em voz alta e pedi para que os publicasse. Daquele dia em diante,
ininterruptamente, por trinta anos, passei a levar o pão da poesia para o meu
povo. Quando publiquei o primeiro livro de poesias, intitulado Via Sacra, dez anos depois, em1981, já
havia formado um público leitor.
Um dos
primeiros poemas que apareceram no jornal foi este “Campestre”:
Há um grilo
que brilha
Agarrado à
folha
E uma estrela
que canta
Presa na mata.
Há um orvalho
que escorre
E morre na
grama.
Há uma rosa
que perfuma
E penetra na
cama.
Há pessoas que
falam,
Ao redor de
luzes esparsas,
As faces
imersas na cor do fogo,
Um jogo de
cartas...
Há louças
recostadas na pedra,
Plantas
amontoadas nas janelas,
Panelas
mágicas nas paredes,
Estranhos
doces em gamelas...
Há silêncios
que preparam auroras,
Preces que
desfiam as horas,
Medos de
bichos e caaporas.
Há tanta paz.
Tanta paz onde
moras.
No mesmo dia
de sua publicação, recebi o telefonema da professora Glorinha, mestra de
Literatura e de vida, informando-me com entusiasmo que o poeta Manoel de Barros
lera o poema, gostara muito e vaticinara: “_ Há uma poeta entre nós.” Marcamos
então um encontro na sua antiga casa, da rua Rui Barbosa. Lá estava eu, com
alguns poemas numa pasta, trêmula, aguardando-o na sala com cadeiras de
palhinha. Ele me levou ao escritório, cheio de livros, cadernetas, um quadro de
Picasso. Falou que leria os poemas, mas seria duro, cortaria, criticaria, usaria
a lima, atingiria com espada os ossos até a medula das palavras. A certa altura
da conversa, chorei, chorei muitíssimo, porque a paixão pelo ofício, pela chama
azul e vermelha da Poesia me consumia, me queimava.
Alguns dias
depois, ele me enviou uma carta generosa e paciente, escrita a lápis, com sua
letrinha miúda. Guardo essa carta, verdadeiro tratado sobre poética, com imenso
carinho. O poeta maduro e sofrido, compartilhando seu conhecimento intuitivo,
existencial e de poesia com a jovem aprendiz.
Dizia a carta:
“Raquel,
Conselhos não vou dar. Nem a poetas se dá isso. Poeta é sempre nuvem.
Em você subjaz a sensibilidade, o resto você desbrava. Ou então ela, a poesia,
é que a vai desbravar.
Achei desiguais seus poemas. Em alguns você consegue a transfiguração
da realidade. Cito a “Feira” da qual já falamos. Talvez isso em você depende da
maneira de construir o poema. Veja uma coisa. O poema “Árvore Aberta”. Vou
lendo, sem me transportar, (você não me tirou em uma imagem qualquer da
realidade), vou lendo encarando a árvore como árvore comum. Ao fim é que notei
a imagem que transfigura: o poeta é uma árvore aberta! Lido o poema de novo, já
com a imagem transfigurando a árvore-comum para poeta-árvore, daí então a
poesia se comunicou. Há muita coisa sua
com essa feitura. É preciso colocar o leitor desde o primeiro verso, se
possível, ou desde a primeira estrofe, dentro da supra-realidade. É preciso que
se implante a mágica. E mágica, em poesia, você sabe, é com metáfora que a
gente implanta. Ou com música. Sei lá, um mistério desses.
Noto ainda que você dá mais importância aos sentimentos do que às
palavras. Aos movimentos do coração mais que os da inteligência. Você tem um
mundo interior muito bonito e se empolga com ele, esquecendo um pouco o verso,
essa unidade rítmica do poema. Sinto que você quer se contar e, muitas vezes,
para isso, se derrama quase prosaica.
Eu acho que a gente tem obrigação de escolher as palavras, ou, pelo
menos, rejeitar algumas que soam feias. Eu acho a palavra Trago muito
feia. Eu não a usaria nunca para título. Bem sei que por um casamento certas
palavras feias viram bonitas. Assim, desafiaram uma vez o poeta Manuel Bandeira
para embelezar a palavra protonotário (feia em si). Pois o poeta arrumou
um poema de ritmo tão bonito e amigo que deu certa aura de simpatia a
protonotário.
Eu evitaria alguns lugares-comuns como estes: desejos frustrados;
reflexos prateados; alegria de viver; sonhos inatingíveis; estéril deserto;
etc. Lugar-comum é esclerose da língua. Poeta tem como função descobrir novas
relações para as palavras. Exemplo um. Em vez do surrado luar prateado,
o poeta Jorge de Lima inventou o luar salobro. Assim, ele renovou a
linguagem, salvando o luar da esclerose. Acho melhor, para a poesia, dizer conspícua
borboleta do que brejeira borboleta; melhor brejeiro anacoreta
do que conspícuo anacoreta. Coisas assim que ensinam a penetrar no
reino das palavras.
Outra coisa. Elemento construtivo do verso é o ritmo. Verso é mesmo uma
construção fônica. Cato em você uma frase: “Onde as graves consequências do que
se afirma?” Dentro às vezes de um outro contexto poderia até valer, mas ali me
pareceu sem força de verso. Sei que não se pode julgar um verso fora do
contexto. Ás vezes sua força vem de outras ideias e outros ritmos que estão
para trás. Sei de tudo isso. Sei que o que comanda o ritmo de um verso pode ser
até uma imagem ou mesmo uma só palavra. Mas me pareceu esse um verso que está
sem o ritmo que o possa tornar poético.
Gostei de alguns poemas do livro que achei à altura daquele que me
chamou a atenção. O seu mundo interior é fascinante, mas não se empolgue tanto
em conta-lo. O fazer poético é que torna o poema durável. Não é seu assunto.
Todos os assuntos já foram ditos. Mas eles só ficam na terra se fundados,
inventados de novo pela linguagem, transfigurados.
Tirei alguns exemplos de versos, palavras, ao acaso, de seu livrinho.
Este é um comentário carrasco. Poderia também
destacar os versos bons, os poemas bons. Fiz uma pequena cruz nos poemas
que gosto. Sei que você, com aplicação, com trabalho, penetrando no reino das
palavras, dando especial atenção a cada verso- sei que você poderá transformar
toda a matéria em boa poesia. Porque são bons, são lindos os sentimentos.
Raquel, na verdade eu não gosto da realidade. E quando alguma coisa me
joga fora dela, eu gosto. O Cão sem Plumas é nome de um livro de
João Cabral, como você sabe. Só o título já nos põe fora da realidade.
Entende-se que no mundo do poeta os cães têm
plumas; mas ele vai falar de um cão sem plumas que é a sua poesia
pelada, rigorosa, sem plumagem de adjetivos. Maiakóvski tem um livro chamado A Nuvem de Calças. Logo o título bota a gente fora da realidade. A nuvem dele
é um ente de calças com a cabeça nas nuvens. Acho importante a transfiguração
da realidade Um dia inventei um alicate cremoso. Coisa absurda, irreal . Mas trouxe-me uma sensação boa de
reconciliação dos meus contrários. As nossas contradições profundas às vezes se
reconciliam através de um casamento anômalo entre palavras.
Depois, enfim, ninguém sabe nada sobre poesia. Mas é bom conversar
sobre ela. Gosto mais das coisas que eu não entendo. Principalmente gosto
daquelas que eu entendo de diversas maneiras. A ambiguidade é que abre o poema
para todos os desentendimentos.
Abraço para você e Ademar,
Manoel”
Todas essas
recordações jorraram aos borbotões na memória, depois de ter assistido ao
documentário Só Dez por Cento é Mentira,
do cineasta Pedro Cezar. Emocionei-me ao ver as ruas largas de minha cidade, a Avenida
do Poeta tingida de pôr-do-sol, as árvores do cerrado em forma de arabescos
negros e o casario do Porto de Corumbá, à beira do rio Paraguai, com os muros
caiados, cobertos de musgo, que guardam séculos de história e decadência.
Emocionei-me ao ver o poeta se entregando ao cineasta e o cineasta se
entregando ao poeta. Uma entrega de amor e fina sintonia. O poeta respondendo
às perguntas com brilho de inteligência e humor. O cineasta captando cada
detalhe, cada palavra, cada gesto, cada objeto como moldura e base da gênese da
poesia. As pessoas que dão seus depoimentos sobre o poeta como Bianca Ramoneda,
Viviane Mosé, Abílio de Barros, João de Barros, tornam-se personagens de uma
história maior: a magia de conviver com o poeta e sua obra. E há os personagens
fictícios que se misturam aos reais, com mais realidade ainda: são duplos,
máscaras, alteregos, seres fantásticos, capazes de criar inutensílios e guardar
águas como o Poeta.
As duas
vertentes mais fortes do documentário são: a reflexão sobre arte e a volta à
infância. Na arte, a poesia se configura como loucura de palavras, montagem de
imagens ilógicas, matéria e poesia retirada do lixo, do monturo, do que a
civilização joga fora como inútil. A infância é o lugar marcado pelo êxtase da
vida, jogo inocente do que se faz e experimenta. É saudade de um tempo pleno que
se renova constantemente em devaneios. É o estado primordial, inaugural,
potência e reinvenção. Assim como Drummond, Manoel de Barros é o Menino Antigo.
O documentário
tem um grand final, uma chave de ouro
que fecha, explica, eleva e confirma o universo do Poeta: um desfile dos
personagens e suas referências.
O professor
carioca Nicolino Novello escreveu no seu livro Onde andará Cristiano?(Rio
de Janeiro: Senai Artes Gráficas, 2007), no
ensaio “Manoel e Raquel: sabiá e
rouxinol em concerto”, que eu era o
rouxinol e Manoel de Barros, o sabiá. Transcrevo trecho:
“Se o sabiá, um pássaro abundante em terras pantaneiras e de um canto
característico, parecendo repetitivo como se maturasse seu gorjeio em busca do
mais original e poético, cujas várias nuances consegue ultrapassar a
identificação e a beleza com seu ambiente, os diferentes cantos de Manoel de
Barros também se nutrem numa demorada troca de substâncias para que a poesia
rompa os limites do humano e do verossímil. Por outro lado, como um pássaro
agregado ao meio, sempre recolhido e cantando em seu arvoredo, que somente daí
se ausenta para cantar o ilimitado da memória, da beleza, do imaginário e do
real (assim esse pássaro acabou com a tristeza do imperador da China e da
margarida triste), o rouxinol de Raquel Naveira vem completar, ao lado de
Manoel de Barros, outras vertentes da riqueza poética em Mato Grosso do Sul.”
Sou rouxinol sim, que canta com um sol na
garganta. Manoel de Barros é sabiá com trevas. O filme de Pedro Cezar
arrastou-me para o nosso habitat de
pássaros e poetas: o firmamento azul, o horizonte de nossa terra e de nossas
almas.