GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Síntese do Mundo
Guido Bilharinho
Depois
do grande romance do século XIX, de Balzac, Stendhal, Dostoiévski, Flaubert,
Tolstoi, Machado de Assis, Eça de Queirós e poucos mais, e, ainda, de Proust no
início do século XX, tudo levava a crer que nada semelhante e, muito menos
superior, poderia ser feito no gênero, tal o nível alcançado por esses autores
em suas melhores obras. Até hoje Dostoiévski é julgado por muitos o maior
romancista do mundo.
Contudo,
cada período é diverso do anterior e isso justamente pelos avanços e
desenvolvimentos proporcionados pelo que o antecede. Assim, no romance. Nada
pode ser considerado, no caso, esgotado ou insuperável, tanto porque a sociedade
humana vai-se modificando, resolvendo velhos problemas e criando outros e, com isso, apresentando sempre novas situações,
como a ciência, até fins do século XIX, adstrita apenas ao físico, ao material
e ao externo, a partir daí, com Freud, adentra os íntimos e recônditos refolhos
da natureza humana. Porém, com ideias ou necessidades já ocorrentes, bastando
ver que no ano em que Freud
publica seu primeiro livro, 1895, Aluísio Azevedo, no Brasil, com o romance Livro de Uma Sogra, quase certamente sem
conhecer a obra freudiana, já tenta a abordagem psicanalítica de suas personagens.
Se
a genialidade de Dostoiévski vasculha o ser humano, revelando e mostrando a
multivariedade de suas atitudes e reações, só depois do advento de Freud é que
os romancistas têm elementos para entender e desvendar as motivações comportamentais,
explorando o inconsciente humano, do qual o consciente, ao que se sabe, não
passa da ponta do iceberg. Por sua
vez, a vida moderna, a cada momento mais complexa, sugere e propicia novos
temas e enfoques aos autores. Aí surgem, além de raros outros, Kafka, Thomas
Mann, Faulkner e James Joyce, este promovendo, ademais, uma renovação da
linguagem, tão radical e fundamental, que, depois dela, em qualquer país, corre
o risco de estar alijado da literatura (prosa e poesia), quem com ela não se
sintonizar de alguma forma.
Passada
também essa geração de grandes romancistas universais, nada fazia prever, ainda
mais num país periférico, mesmo que no de Machado de Assis, o aparecimento de
um ficcionista do mesmo ou de maior nível que aqueles. Mas, eis que, no Brasil,
quando o romance, após a eclosão e realizações das duas grandes correntes, a
social e a intimista, despontadas no início da década de 1930, está num impasse
e, principalmente, o romance regionalista parece esgotado e superado, surge
Guimarães Rosa (Cordisburgo/MG, 1908 - Rio de Janeiro/RJ, 1967), primeiro com
os dois volumes e as sete magníficas novelas de Corpo de Baile (1956), obra cuja unidade não deveria ter sido
desdobrada em três livros e novos títulos como foi, e, depois, no mesmo ano,
com o extraordinário Grande Sertão:
Veredas (1956), uma das grandes obras-primas do romance universal,
comparável, e superior em muitos aspectos, ao que de melhor e de mais
sofisticado produz, no e em qualquer gênero, o engenho e a arte a que se refere
Camões.
Esse
romance monumental, partindo de época certa e área determinada, palco da trama,
transcende essas coordenadas limitadoras para projetar-se num tempo indistinto
e num espaço universal. Sua realização é tão grandiosa quanto a aventura humana
na superfície do planeta. Nele se cruzam e se entrecruzam, em vastas
proporções, os sentimentos universais da humanidade em geral e do indivíduo em particular. As mais
diversas correntes de pensamento encontram-se numa única personagem e suas ideias,
sentimentos e emoções são comuns à totalidade dos seres humanos, em todas as
eras e espaços, desde o fundo abismal dos tempos e da solidão, temores e
perplexidades do homem primitivo.
O
meio ambiente e o aspecto físico das personagens são tenuamente delineados. O
sertão dos gerais e o rio Urucuia constituem, apenas, o palco mágico de cenas
quase fantasmagóricas do desenfreado cangaceirismo das hordas de jagunços. As
personagens, silhuetadas mediante pinceladas sem tinta, não podem ser
imaginadas em seus próprios aspectos, mas, somente por meio de seu sentir e
modo de agir. Os sentimentos e pensamentos do jagunço Riobaldo, protagonista do
romance, é que são tematizados e suas ações não significam mais do que a corporificação
de suas ideias.
Riobaldo
é o homem universal, que conta a hipotético ouvinte, no linguajar rude dos
sertões e na linguagem indefinível e joyceana do romance (de espantosa
criatividade e excepcional eficácia), suas atribulações e sua amizade com Diadorim,
a grande surpresa do livro. Somente por si, a presença dessa última personagem
e o desfecho inesperado de seu drama compõem outro fio de romance, se não o
mais saliente, pelo menos, o mais patético dos três “romances” de Grande Sertão: Veredas: as lutas
desumanas, Riobaldo e sua visão da existência e a sentimentalidade poética de
Diadorim. São três fios destacados, além de outros, com que Guimarães Rosa
constrói seu grande sertão, síntese do mundo.
(do
livro Romances Brasileiros – Uma Leitura
Direcionada. Uberaba, Instituto Triangulino de Cultura, 1998).
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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba,
editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e
autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional.
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