terça-feira, 23 de março de 2010

VIEGAS FERNANDES DA COSTA


Notas sobre a literatura catarinense 05

Os cruzeiros de Urda Alice Klueger

Viegas Fernandes da Costa

Ao observarmos a história da literatura produzida a partir de Santa Catarina, percebemos a força do seu caráter fálico. Em outras palavras, percebemos o quanto nomes masculinos hegemonizam, no transcorrer do tempo, o fazer literário catarinense. Poucas são as escritoras que figuram no cânone literário deste Estado, no qual se destacam Delminda Silveira de Souza (1854?-1932), Maura de Senna Pereira (1904-1991), Lausimar Laus (1916-1979) e Eglê Malheiros (1928). A estas autoras podemos incluir, mais recentemente, o nome de Urda Alice Klueger, nascida no município de Blumenau em 1952 e atualmente em plena atividade literária e acadêmica.
Urda estreou na literatura em 1979, com o romance “Verde Vale”, seu livro mais conhecido e que já conta com mais de dez edições. Depois de “Verde Vale”, publicou “As Brumas Dançam Sobre o Espelho do Rio” (1981), “No Tempo das Tangerinas” (1983), “Te Levanta e Voa” (1988), “Cruzeiros do Sul” (1992) e “Sambaqui” (2008) – todos romances. A autora escreveu também livros de crônicas (destaque para “No Tempo da Bolacha Maria”, de 2002), relatos de viagens (destaque para “Entre Condores e Lhamas”, de 1999), além de literatura infantil e historiografia. Sua obra vasta e de gêneros diversificados tem sido objeto de estudos acadêmicos e da crítica literária, cuja apreciação não é unânime: há quem reconheça na prosa de Urda Alice Klueger inovação e qualidade literária; e há outros, como Antonio Hohlfeldt, em que a crítica aponta para problemas estruturais e pouca inovação. Divergências a parte, inegável é a importância do conjunto da obra de Urda Alice Klueger na conjuntura cultural catarinense e grande é a quantidade de leitores que acompanham suas publicações.A ficção de Urda sempre esteve muito associada à temática da imigração germânica no Vale do Itajaí, principalmente quando tratamos dos seus primeiros títulos. Entretanto, há um diferencial entre o texto desta escritora e o de outros autores que abordam o tema de forma mais ortodoxa, como é o caso, por exemplo, de Gertrud Gross-Hering (1879-1968). Já desde “Verde Vale”, Urda procura trabalhar o elemento germânico miscigenando-se aos demais grupos étnicos presentes na região, e a miscigenção é sempre um ato de ousadia, um enfrentamento social que tende ao aprimoramento material da sociedade e ao seu desenvolvimento civilizatório. É o descendente de alemães que se relaciona com o negro, com o índio, com o italiano ou com o brasileiro; seus personagens exercitando, assim, a democracia racial defendida por Gilberto Freyre (1900-1987). Não há, portanto, no universo ficcional de Urda Alice Klueger, o retrato de uma colonização de raiz identitária única, mas a construção de uma sociedade rica porque resultante do encontro multiétnico. A este respeito, manifestou-se a autora em entrevista ao “Sarau Eletrônico” em 2008:
“Tive contato com a obra do Gilberto Freyre depois que escrevi ‘Verde Vale’ e ‘No Tempo das Tangerinas’. Parece que ganhei um rótulo: a escritora que escreve sobre Blumenau e sobre o alemão. As pessoas esquecem dos meus livros que são totalmente diferentes. Acho que o que pegou foi a miscigenação que havia dentro da minha casa. Nós éramos híbridos em tudo: culturalmente, etnicamente e religiosamente. E as rejeições que minha mãe sofreu refletiam muito na gente. (...) Tenho lembrança de aniversários, casamentos, dessas festas que reúnem toda a família. Nós éramos três meninas muito bonitinhas, e pessoas da família me pegavam no colo e diziam: “estás vendo essa aqui, como é bonitinha? É do Rolando!” – que era meu pai. E aquilo tinha toda uma carga de preconceito. Ela era do Rolando, mas era também filha da brasileira. Isso reflete profundamente em mim, tanto é que nunca me senti alemã, mas sempre uma brasileira de muitas origens. E a partir de um certo momento, além de brasileira, passo a me sentir americana. Hoje, se me perguntarem, não diria cidadã do mundo, mas cidadã da América.”Além de Gilberto Freyre, é possível encontrarmos outras referências autorais em sua obra, notadamente de Érico Veríssimo (1905-1975), com sua saga “O Tempo e o Vento”; e do norueguês Knut Hamsun (1859-1952), com seu romance “Os Frutos da Terra”. De Veríssimo a predileção pela saga histórica, e de Hamsun a força do trabalho humano domesticando a natureza e construindo a civilização. Todos esses elementos que elencamos aqui aparecem com muita força no romance “Cruzeiros do Sul” que, acreditamos, constitui-se no livro mais rico e bem construído de Urda Alice Klueger até o momento. O título tem importância especial se considerarmos o fato de “Cruzeiros do Sul” marcar uma ruptura ideológica na produção da autora. Diferentemente dos textos anteriores, a construção idílica da narrativa sofre a irrupção de um realismo cruel e desestruturador dos acordos sociais, como que se “Germinal” de Émile Zola (1840-1902) passasse a ditar as palavras até então paridas por Hamsun.Quando Urda escreve “Cruzeiros do Sul”, o Brasil recém sofrera o choque econômico do Plano Cruzado, promovido pelo governo José Sarney em 1986. Enquanto bancária (profissão que exerceu até sua aposentadoria), a autora presenciou o desespero daqueles que venderam suas propriedades rurais, aplicaram o dinheiro na poupança a fim de viverem da correção monetária e, depois do novo plano econômico, viram sua segurança financeira desaparecer. É procurando contar a história dessas famílias, cuja origem estava no campo, que a autora retrocede no tempo e, flertando com a historiografia, passa a narrar a história daqueles que descenderam do encontro, ainda no século XVI, da índia xokleng Madjá-Aiú e do degredado europeu “Cabelo Amarelo”, e que participaram da construção de Santa Catarina. Assim, o “cruzeiros” do título torna-se duplamente referente: a constelação sob a qual se desenrola a narrativa e a moeda, cujo desaparecimento abrupto, interrompe uma trajetória familiar que até então parecia destinada à felicidade.Se por um lado “Cruzeiros do Sul” reproduz alguns clichês do romantismo literário e omite alguns eventos importantes da historiografia catarinense (como a Guerra do Contestado), por outro, constitui-se enquanto marco na obra da autora e na literatura produzida a partir de Santa Catarina justamente por este seu caráter de ruptura e de denúncia social.
* Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor. Autor de "Sob a luz do farol" (2005), "De espantalhos e pedras também se faz um poema" (2008) e "Pequeno álbum" (2009). Edita o site de literatura Sarau Eletrônico, da Biblioteca da FURB. A coluna "Notas sobre a literatura catarinense" é mensalmente publicada no jornal Expressão Universitária, no site Sarau Eletrônico e no blog Alpharrábio. Permitida a reprodução desde que citado o autor e o texto mantido na íntegra.

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