quarta-feira, 7 de julho de 2010
OS MORDEDORES
OS MORDEDORES
O bom Rebelais, apresentando aos seus leitores o extraordinário Panúrgio, diz que esse homem fenomenal sofria muito de uma moléstia “qu’on appelait en ce temps-là faute d’argent”; mas acrescenta: “toutefois il avait soixante et trois manières d’en trouver toutejors à son besoin...”
Sessenta e três maneiras de arranjar dinheiro! já era engenho!
Os “mordedores” do Rio não possuirão igual número de processos “de dentada”; mas é forçoso confessar que lhes não faltam recursos, que revelam às vezes verdadeiro gênio.Não se sabe quem inventou estas expressões pitorescas: morder, mordedor, dentada. Quem sabe jamais como nascem, como se acreditam, como ganham foros de cidade os termos da gíria? Um termo de gíria é um cogumelo que nasce e cresce da noite para o dia, criado não se sabe como.Na gíria carioca, não há quem não o saiba – morder é pedir dinheiro: quando a vitima satisfaz o pedido, diz-se que sangrou. Morder e sangrar! Como isso exprime bem a violência do ataque e a dor da resignação! Dinheiro é carne, é sangue, é vida: é coisa que se arranca sem dor, sem um gemido profundo e sincero...
Dizem que, no Rio de Janeiro, os mordedores são legião: e não se trata já dos que mordem por necessidade passageira, mas dos que mordem por ofício, dos que vivem disso, dos que estudam teórica e praticamente a ciência da Dentada, como outros estudam a Medicina ou o Direito, e que conseguem ficar especialistas notáveis na matéria.Há mordedores que mordem toda a vida, e não fazem outra coisa, porque não têm tempo para mais. É o caso de um, que, certa vez, respondeu uma coisa sublime a uma das suas vítimas habituais, que lhe dizia:
- Mas isto é uma vergonha! você não tem pejo de viver à custa dos outros? por que é que você não arranja um emprego?
- Não posso! – disse o profissional da Dentada, com uma resignação filosófica, metendo as mãos nas algibeiras – não tenho tempo! Das sete da manhã ao meio-dia ando à procura de quem me pague um almoço; do meio-dia à seis da tarde vivo em busca de quem me pague um jantar; das seis da tarde à meia-noite, corro à cata de quem me pague uma ceia – que diabo quer o senhor que eu ache tempo para procurar um emprego?
Essa frase profunda explica a vida de muita gente. E, se imaginarmos o quanto deve ser necessário ter talento de invenção para viver assim, reconhecermos que o genial Panúrgio deixou descendentes que hão de viver enquanto o mundo for mundo.
Os recursos inventivos do mordedor são variadíssimos: a doença própria ou de pessoa da família, até a morte – tudo é explorado, tudo é posto em prática e – o que é mais extraordinário – tudo surte efeito.Muitas vezes, quando o mordedor escreve “que está retido num leito de Procusto” – onde ele realmente está é num botequim de luxo, bebericando coisas caras em companhia amável. Em todos os botequins de luxo há caixas de papel e de envelopes, que se destinam especialmente aos habitués da casa e da dentada. É um consumo formidável! até espanta que ainda algum papeleiro não se tenha lembrado de pôr em circulação papel para dentadas com fórmulas impressas.Mas o mordedor de profissão não explora apenas a própria doença imaginária: explora também a moléstia imaginária da mulher, dos filhos, da sogra, do sogro, dos netos, do diabo! E, às vezes, o caso ainda é mais grave: a dentada é dada para enterrar gente que nunca morreu, e até gente... que nunca existiu!Uma das vítimas que mais sangram é o padrinho. Para um bom mordedor, um compadre é uma mina. Há compadres ricos, taverneiros ou comendadores, que levam a vida a pagar colégio, roupa, médico, botica e enterro para os afilhados. É o caso desse gordo capitalista da caricatura de Calixto. O bom homem tem um afilhado que já morreu dez vezes. Dez enterros! – e o capitalista considera que já vai sendo tempo de comprar um jazigo perpétuo para esse afilhado que tanto dinheiro lhe custa em enterros provisórios...Como, porém, fugir ao cumprimento dos deveres de padrinho?
E como há de a vítima resistir, na rua, à amabilidade, à doçura, à meiguice, ao encanto, à sedução do mordedor, que lhe endireita o laço da gravata, que lhe sacode a caspa da gola do casaco, que lhe pergunta pela saúde de toda a família, e acaba por melifluamente encartar a dentada entre um cumprimento e um sorriso? há mordedores tão hábeis, tão peritos no elogio e no carinho, tão cativantes, que as vítimas ainda lhe agradecem o favor da dentada...Às vezes, porém, muitas, muitíssimas vezes, a vítima protesta, revolta-se, foge com o corpo, recusa-se a sangrar...Aos infinitos recursos de ataque do mordedor, correspondem os infinitos recursos de defesa do mordido. Há mil maneiras de pedir dinheiro, mas também há mil maneiras de recusá-lo. E, às vezes, a fórmula do pedido é a mesma fórmula da recusa. “A vida vai mal” – diz o mordedor; “a vida vai mal” – diz o mordido...É a eterna luta entre o caçador e a caça, entre o pescador e o peixe, entre o lanceta e o braço, entre o dente e o couro.Mas é lícito dizer que, nessa luta, quem quase sempre vence é o mordedor. Não há couro tão rijo que não acabe por se deixar atravessar pelos dentes dos profissionais da Dentada. Tudo depende dos dentes de quem morde: há dentes fracos, que desanimam – mas há dentes de aço, que são até capazes de cravar-se com proveito na couraça de um navio blindado...
Olavo Bilac - Rio, agosto de 1906.
envido por julio castro castro
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