Cachorro louco solto nas ruas
Neil apavorado Ferreira
Chamem a
carrocinha. Mesmo tendo sido vacinado, sinto medo de tentar falar de duas
coisas que eu pensava que não existissem
mais nestas latitudes. Latitudes: regiões em que latem só cachorros
saudáveis e vacinados com a vacina
tríplice, que inclui a contra a raiva. Regiões que se mantém à relativa mas
segura distância do “país dos mais de 80%”.
Os mais
antigos como eu, da geração hoje premiada com raros cabelos brancos e sabedoria
ancestral, ancestrais de nós mesmos que somos, não esses moleques travessos e
gatinhas gostosas de apenas uns 55, 60 aninhos
que, saltitantes, povoam os comerciais de produtos geriátricos
milagrosos e de casas de repouso, verdadeiros spas para quem pode pagá-las.
Nós, os detentores
da sabedoria revolucionária contida no “Livro Vermelho” do Comandante Mao,
temos pleno conhecimento do que seja cachorro louco solto nas ruas, na nossa
época recolhidos pelas carrocinhas, com enormes riscos para os mal pagos trabalhadores públicos.
Uma lenda
urbana, que a meninada conhecia de trás para diante, contava que a carrocinha
levava os cachorros apreendidos para
fazer sabão. Nunca vi um sabão feito com cachorro apreendido nas ruas.
Talvez os captores comessem o butim, ensopado ou assado, segundo milenares
receitas chinesas.
Naqueles tempos bíblicos, não havia PT e nem
cumpanherada. Os trabalhadores públicos trabalhavam de fato e pra valer. Não
havia vaga de garagista da Câmara de Vereadores, ganhando 23 mil pilas por mês, sem nunca aparecer na garagem, nem para bater
o ponto.
As catiguria
num vévía fazeno grévi nem ameaçano
di fazê-las elas. Não sabotavam o metrô quase dia sim dia não, atirando
milhões de pessoas à Rua da Amargura, para percorrê-la a pé horas a fio, para
não perder o dia, e não raramente o emprego.
Trabalhador
que trabalhava sentia orgulho, não apenas canseira, mal estar e raiva, mais
tarde insufladas pelos ex-querdistas,
por ter tabalhado o dia inteiro. O Partido dos Trabalhadores é contra os trabalhadores que trabalham. Seu
principal (e suspeito que único) comandante, desde o princípio dos tempos, fez
uma vitoriosa carreira armando greves.
Greve, sabe-se, é ter aumento de salário e receber o aumento e o salário “dos dias parados” sem trabalhar e,
eventualmente, levar à falência sua fonte de trabalho.
Relembrada a
carrocinha, apresento aos mais jovens o cachorro vitimado pelo virus da raiva.
Geralmente apresenta-se de olhos esbugalhados, expressão de dor insuportável
que talvez seja real, há as que desconfio fingidas, babando, rosnando, latindo
sem parar. E mordendo.
Quando
criança em Cerqueira Cezar, eu e mais uns 5 moleques fomos mordidos por um
desses indivíduos de rua, certamente não vacinado, desparecido logo depois do
ato criminoso, que nos vitimou em plena
luz do dia.
O único
médico da cidade receitou o único medicamento então conhecido, não lembro o
nome e nem sei se ainda existe, já que os cachorros loucos sumiram da paisagem
– 31 injeções na barriga, em volta do umbigo, uma por dia. Há quem ache, lendo os meus textos, que não
fui curado de todo. Não fui; mantive esta condição em rigoroso segredo até
agora.
Não tenho
sabença científica para saber como os cachorros são contaminados. Já ouvi falar
que os morcegos transmitem o virus da raiva, não entendo como os transmitem. Dizem que os macaquinhos que
vem comer banana na minha mão no meu jardim, também os transmitem e se fui
mordido por um deles e estou contaminado, não percebi.
Neste caso,
eu poderia contaminar o Fedegoso e o Chicão se os mordesse à traição. Isso nos
leva ao dilema ainda não resolvido por nenhum Darwin evolucionista: quem nasceu
primeiro, o virus da raiva ou o cachorro
? O ovo ou galinha ?
Afirmo com
toda convicção mas sem nenhuma prova , que identifiquei como contaminada a
presença nestas capitanias de um Cérbero
feroz, amedrontador, exibindo baba pastosa escorrendo pelos cantos da
bocarra, ganindo ganidos lancinantes, rosnados ameaçadores,
dentes arreganhados, latindo com franqueza
“Pra ganhá a inleissão vô mordê as canela dus inimigo”. Vai. Já está.
Elle avisou
que vair morder canela. Eu aviso:
chamem a carrocinha e tomem vacina antes
que seja tarde demais.“Quem avisa amigo é”, avisa a vox populi vox Dei.
“Vô mordê as canela”, ameaçou; focinheira nelle.
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