sábado, 3 de novembro de 2012

VENEDICKT EROFEEV


Venedikt Erofeev, um bebum genial


Eu morava em Moscou  e trabalhava  na Rádio Central, onde fazia locução de programas para os países de língua portuguesa. 1990 era um ano complicado na vida soviética, um revirar constante de situações, notícias escabrosas vindo à luz, homossexuais saindo dos guetos, ciganos surgindo dos porões, agenciadores de prostitutas antenados às portas dos hotéis e estações ferroviárias. E enquanto alguns autores também vinham à luz, com seus livros reeditados ou editados pela primeira vez, algumas vozes se calavam. Naquele ano morria um escritor marginalizado, esquecido propositalmente, de uma força descomunal e que, a exemplo do cantor Vladmir Visotski, sua obra era escondida nas gavetas de muitos dos poderosos do Kremlin. Não podiam admitir, mas muitos desses o admiravam. Eu preciva noticiar seu desaparecimento. Não pude.

Quem é esse escritor marginalizado e perseguido pelo sistema soviético? Certamente aqui no Brasil ninguém, ou quase ninguém sabe de sua existência.

Venedikt Erofeev (Венедикт Васильевич Ерофеев; 24 Outubro 1938) era uma personalidade lendária. Em 1970 editou em dois exemplares datilografados sua novela Moscou-Petuchki (Москва – Петушки), que em poucas semanas circulou por toda Moscou, varou regiões indevassáveis, penetrou fronteira a fora.   

Dele falava-se constantemente, mas pouco o conheciam realmente, mesmo porque ele sequer gostava de qualquer popularidade, principalmente de paparicos. E como vivia? Como conseguia tempo para escrever?  Trabalhava permanentemente. Nas obras em que trabalhava, quando escrevia, deitado no beliche de um vagão que servia de moradia para construtores civis, chegavam perto dele e perguntavam: “O que escreves? Por acaso queres entrar para a Academia? Seja como for, bem sabes que não conseguirás. Melhor encher a cara de vodca, aqui conosco.”

Filho de “inimigo do povo”, nascido na região de Murmansk, depois do curso secundário mudou-se para Moscou onde tentou uma vaga na Universidade. Conseguiu-a, mas um ano e meio depois era excluído por não freqüentar as aulas de “Preparação Militar”. A partir daí (1957), trabalhou nas mais diferentes funções: carregador numa loja de produtos alimentícios, ajudante de obras na construção civil, guarda, sondador-perfurador geológico, bibliotecário, e vai por aí. Mas o único trabalho que realmente agradou-lhe foi o de ajudante numa expedição parasitológica, na estepe Golodnaia (estepe da Fome), no Uzbequistão, e o de ajudante de laboratório de pesquisa científica para a luta contra insetos voadores e sanguessugas, no Tadjiquistão.

Começou a escrever a partir dos cinco anos. Sua primeira obra digna de nota são os Escritos de um psicopata, iniciados aos 17 anos. É a mais volumosa e absurda dentre tudo o que escreveu. Em 1962 Boa Nova, obra que alguns “especialistas” consideraram uma “confusa tentativa de criar um Evangelho do Existencialismo Russo”, tal como Nietzche, “virado do avesso”. Escreveu vários artigos sobre os noruegueses Hamsun e Byerson, assim como acerca dos dramas da última fase de Avicena. Todos eles foram recusados pelos editores porque eram “metodologicamente horripilantes”.
Nos últimos anos, tudo o que escrevia ia se acumulando em dezenas de cadernos e grossos manuscritos. Sua doença (câncer na garganta), revelada em 1985, adiou indefinidamente a concretização de seus planos.

Foi submetido a duas complicadas cirurgias, recebia uma mísera pensão por invalidez. Até os 50 anos, nem em sonhos poderia pensar em seu reconhecimento como escritor. Reclamava que rebaixaram seu grau de invalidez. Dos 50 rublos que recebia, passou a receber 26. No atestado escreveram que “assim e assado”, “pode ter por ocupação uma atividade de escriturário ou conforme os seus hábitos profissionais”. Mas ele acabava se conformando: “Pagam-me exatamente tanto quanto minha Pátria considera necessário.”

Seu aparecimento diante dos guardiões das regras éticas da escrita, por certo deixou alguns chocados pelos “mimos” de sua linguagem.  Não reclamava, apenas dizia que os maiores adversários de suas expressões, tanto na imprensa como na literatura, eram exatamente os que mais as utilizavam em suas reuniões e plenárias. Tinha idéias para tudo. Dissertava sobre a embriagues, sobre o sexo, sobre os poderes, sobre as mulheres. Em seu Moscou-Petuchki, único livro editado, fala das mulheres:

“Eu era contraditório. Por um lado gostava que elas tivessem aquela cintura, já que nós não temos cintura nenhuma. Isso provocava em mim... como dizer? Volúpia? Sim, despertava em mim volúpia. Mas por outro lado, elas retalharam Marat a navalhadas. Ora, Marat era incorruptível e não deveria ter sido retalhado! Só por isto já matava toda a volúpia. Por um lado, como Karl Marx, eu gostava da fraqueza delas, isto é, elas são obrigadas a mijar de cócoras, e isso agradava-me, enchia-me... bem, de quê? De volúpia? Sim, algo assim. Mas por outro lado, foram elas que dispararam  contra Ilitch! Isto matava novamente a volúpia: podem ficar de cócoras, mas para que disparar contra Ilitch? Seria ridículo falar de volúpia depois disto.”

Em 1973, Moscou-Petuchki foi editado em Israel, quatro anos depois na França, RFA, Estados Unidos, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Polônia, Iugoslávia. Em todos os países obteve sucesso, mas em Moscou ainda passava despercebido “oficialmente”.

Perguntado se se considerava um dissidente, respondia que não, que nunca tivera nada a ver com a história. Sempre viveu à margem da dissidência. A antimusicalidade dos dissidentes afastava-o, suas vozes não criavam harmonia.

Venedikt morreu. E quase não se noticiou. Quando propus. na Rádio Central, dizer uma notinha rápida sobre Erofeev, Pugachov, o editor, alertou-me. Não era salutar, não devia atiçar um fogo em vias de se apagar.
 
“E se eu morrer um dia  – e morrerei brevemente --  sei que morro sem ter aceitado este mundo,. Tê-lo-ei aprendido de perto e de longe, por fora e por dentro, mas morro sem o ter  aceitado. Morrerei e Ele perguntar-me-á: “Gostaste de viver por lá? Foi bom ou o quê?”. Eu ficarei em silêncio, de olhos baixos. Essa mudez é conhecida pó todos os que sabem o que acontece quando se sai de uma bebedeira duradoura e pesada. Não é a vida de um homem uma momentânea bebedeira da alma? Todos nós vivemos como que embriagados, só que cada a seu modo: uns bebem muito, outros bebem menos. E o efeito é diferente em cada um: um ri-se nas barbas deste mundo, outro chora ao peito do mundo. Uns já vomitaram e sentem-se melhor, mas outros só agora começam a ter vômitos. E eu, o que sou? Já provei muitas coisas mas nenhuma deu resultado. nem sequer me ri pra valer uma única vez, nem sequer vomitei uma única vez. Eu, que experimentei tanto neste mundo, tanto que já perdi a conta e a seqüência, estou mais sóbrio do que ninguém; só que já não me faz nenhum efeito... “Porque estás mudo? – pergunta-me Deus, envolto em relâmpagos azulados. O que responder? Continuarei assim, calado, calado...”

Espero que lá no alto Venedikt Erofeev tenha resolvido falar, para alegria de anjos e santos.

PS.  Traduzi o seu Moscou-Petuchki. Cadê editor?
fonte: LUIS AVELIMA

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