sexta-feira, 16 de setembro de 2011

LUIZ ROSEMBERG FILHO


Câncer, o imenso sonho para todos
.
Por Luiz Rosemberg Filho e Sindoval Aguiar, do Rio de Janeiro

O filme de Glauber Rocha ainda hoje marca nossa cinematografia. E assombra aqueles que buscam o sucesso fácil, a prostituição e a traição.

“Que ruim é a vida e o quanto nos degeneramos! Falar de seus sofrimentos e permanecer tranquilo quando o mal acontece!”
Bertolt Brecht

Colagem de Luiz Rosemberg Filho
Quem cedeu uma só vez à lógica do mercado emburrecido, ocupado e acrítico, não encontra outra saída a não ser justificar a sua traição inescrupulosa ao sistema de burocratas, burocracias, ancines, editais, privilégios... numa espécie de reencarnação do não muito distante golpe militar de 1964. Eles não queriam um cinema dominado, patriótico e a reboque da TV e de Hollywood? Conseguiram. Foram pacientes para alcançar esse fim com segurança, e que veio curiosamente com a “abertura”. Ora, “Chico Xavier”, “De Pernas Para o Ar”, “Cilada.com”... é o quê? Resposta: uma total submissão ao fascismo, ou uma continuação da “revolução” por outros meios.

Nossos “cineastas” aprenderam a serem obedientes e servis. Legitimam o que seja, desde que o mal-estar do saber seja a referência dominante. Pensam como se estivéssemos em Hollywood, onde usam o cinema para dopar o público e transformá-lo numa caixa registradora, em um suporte da indústria, deles! E claro, uma fortificação militar-econômica-cultural da ocupação idiotizante do planeta. Digamos que a guerra moderna passe pelo cinema. E nossos idiotas não percebem que trabalham para o Império, não para o Brasil. E menos ainda para um cinema reflexivo, nosso.

Talvez a real liberdade em Glauber seja uma reivindicação de independência, em relação a muito de seus companheiros que traíram não o Manifesto da Fome do cinema novo, mas o próprio cinema como um todo. Associaram-se com a porca publicidade, à televisão mais podre do Continente e a um jornalismo oficial imundo, para se sentirem protegidos por um mercado que segue não sendo nosso. E daí para frente, inseriram-se no mundinho idiota das celebridades duvidosas, cultuadas pelo senhor Amaury Jr, velho dissecador de cadáveres.

Claro que Glauber Rocha, que foi uma imensidão de sonhos para todos, foi chamado de louco, degenerado e ainda hoje sempre que possível é avacalhado por incompetentes publicitários de plantão. E a partir de tanta inveja, o silêncio funciona como uma muralha contínua enfiada entre o sonho e a realização.

E muitos são os idiotas falsamente sensíveis que formulam orientações fascistas como sustentáculo de suas vidinhas medíocres, com suas intimidades podres e conservadora. Mas, enganar o povo sempre foi fácil. Difícil foi fazer bom cinema. E poucos foram os que fizeram, entreabrindo novos sonhos para todos. Ou seja, Glauber foi um outsider em relação aos seus coleguinhas de sucesso. Instrumentalmente, um criador de sonhos poéticos amaldiçoado por reacionários e velhos conservadores, as velhas múmias da esfera cultural. Mortos-vivos que usaram o cinema, sem o pensarem em profundidade. Basta que se veja seus filmes horrorosos, fechados só com o sistema do dinheiro. Cineastas menores raivosos, complexados e imersos no cabresto do sucesso a qualquer preço. Claro que no capitalismo o dinheiro é a única identidade respeitável. Mas não a qualquer preço pois, então, teríamos que aplaudir a prostituição e a traição.

Emoldurados no sucesso artificial de celebridades empalhadas são, no máximo, seres deserotizados, burocratas velados no ancoradouro dos editais e das panelinhas. Decupagem clássica da malandragem oficial. Uma experiência da superfície dos “podres poderes” da república. Um reforço ilusionista na história como erro. No sentido contrário, e sem exageros, o cinema de Glauber segue sendo mais vanguarda que todo esse lixo vendido como papel higiênico vitorioso. Lixo investido de editais, burocratas, idiotas, “sucesso”, festivais, prêmios e poder. Mas sem o próprio mercado, claro!

Não somos contra um cinema de mercado sensível e inteligente, como foi o caso de “Macunaíma” de Joaquim Pedro de Andrade. Mas dá para comparar com “De Pernas Para o Ar” ou “Cilada.com”? Mas é cinema ou televisão? Como televisão até se justifica, pois ela segue sendo um espaço fixado no lixo da história. Um conglomerado infinito de aberrações preso ao velho fascismo. Uma espécie dissecação geométrica da m... e onde se especializa uma hostilidade permanente ao pensamento. Claro, com todos se julgando sensíveis e profundos. Obscuros, mas iluminados pelo artifício do sucesso a qualquer preço. E com ele, a prostituição e a “nota”. E sem um mínimo de solidez não há como defender essa televisão que existe hoje aqui. Menos ainda o cinema miniaturizado que vem dela. Na verdade, negócios instrumentalizados pela ideologia dominante.

Basta ver os temas, os “atores”, as imagens e o resultado final, que valorizam, claro, a imbecilidade capaz de dopar como o cinema de Hollywood. A pergunta que fica é: não há como ser melhor? Essa caixa-preta da ideologia dominante não pode ser aberta? Esses mandarins eletrônicos não podem ser substituídos por ideias, sonhos, saber e confrontos? Dizem que a ditadura acabou, mas a TV permaneceu igual, e sempre piorando. E quem ganha com isso? O espetáculo vazio ou o telespectador?

Octavio Paz diz, sabiamente, que somos menos uma tradição a seguir do que um futuro a construir. Porque o que tememos é o passado, a nos intimidar, na construção do novo como ruptura e avanços; e como desconstrução e construção como uma arqueologia de movimentos, busca e transfigurações sobre o já existente. E com isso, tudo fica a dever como tempo, memória e história, uma arquitetura de nossa presença, sempre desconhecida.

E se não construímos esse básico, todas as possibilidades ficam impossibilitadas e até a música se omite, refugiada como proteção em sua força e evolução, mas sem nunca perder as dissonâncias somente possíveis na arte. Também o cinema, este que os USA encarceram como produto e entretenimento em seu apelo na lógica do capitalismo. Mas, a lógica é somente parte de um apelo diferencial para percepção e cognição e não para conduzir uma razão. Porque nenhum sentido pode se definir como o de um fim único e imutável, transcendente e ontológico. Sendo necessário construí-lo e desconstruí-lo sob a lógica das diferenças e do conhecimento, o que os grandes experimentadores da música e do cinema sempre fizeram ao ultrapassar o próprio tempo.

Nossa tarefa será sempre o caminho do desconhecido porque o conhecido é sempre o repouso do trágico! E o novo será sempre o moderno a ser desconstruído, vencendo as barreiras da cultura, da lógica, da técnica e do próprio tempo. E, o Brasil, tem sido um exemplo no alargamento dos processos contra todos os domínios e os do próprio tempo, um exemplo de retardo, ignorância e exclusão. Muitos procuram o nosso país pela certeza de nossos princípios de busca e descobertas ainda não definidas como gostaríamos numa realidade concreta. Esta que afirma e nega, não trucida!

Ontologia é essa linguagem, essa arquitetura, esse processo em pleno movimento de ser, estar e vir-a-ser. De diferenças, experimentos e dissonâncias e que a razão lógica das excedências, o poder econômico, não tem permitido. Na construção dos espaços como arquitetura de descoberta e desenvolvimento. Um caminho para um encontro mais próximo de nós. Reunindo as possíveis qualidades e valores de que somos possuidores como indivíduos e como totalidade.

Indiscutivelmente, muito diferentes do que se globaliza como homogeneização de uma vontade única intocável e imutável. O que já percebemos que precisa ser tocado e transformado com muito de nós e de nossos valores por necessidades históricas e vontades. Este é o sentido de uma afirmação ontológica em Marx e Lênin. Ir além de nós para atingir o todo, o que já atingimos na música e que Humberto Mauro ousou em seu primitivo idealismo. E que, para glória de nosso cinema, o que Glauber Rocha conseguiu em seus filmes, exorbitando em “A História do Brasil” e nesse “Câncer”, colocando-nos onde sempre estivemos: entre animais e onde cada um de nós possa meter a carapuça ou arrebentar os espelhos antes da submersão. O mesmo que Goethe sugeria como redenção, as diferenças entre um ser humano e um ser irracional, pela cognição, pelo pensar, pelas associações e pela linguagem...a comunicação.

Um processo de abrangência arquitetural que podemos construir desde que pensemos em nós, no aqui e no além, como um todo. Nosso trabalho e nossas ideias precisam partir da consciência de que toda realidade é mais concreta do que real, ou verdadeira ou falsa. E que somente pode existir de fato se for construída e desconstruída na dinâmica de um processo de linguagem e comunicação. Daí a necessidade de uma presença e de um trabalho velado e descoberto, no particular e no todo, como partidos, a organização e a própria realidade em suas percepções, econômicas, políticas e culturais.

Sabemos ser a arte a única forma de linguagem mais abrangente no processo, mesmo submetida às injunções econômicas e de poder, de desvios e da própria censura. Falando todas as linguagens, a arte consegue escapar porque sua relação é muito próxima do poder como expressão e movimentos. Mesmo não definindo ou protegendo os outros espaços em que sua autenticidade não se discute, o lugar comum onde se confina ou se exila e que, pode até servir como expressão, como suporte, à arte mais próxima do poder. Isso ocorre na música, na pintura, na literatura como no teatro e no cinema. A presença do poder será sempre inegável! E dela a arte escapa pela linguagem de incontidos formalismos, onde a presença do novo pode estar contida e já, subjetivamente, expressa e de difícil percepção. Escapando ao peso da realidade que jamais compensa.

Essa busca de ontologia é uma necessidade para o entendimento e a procura de nosso país, esse nunca procurar e muito menos encontrar. O que não podemos deixar de perceber e respeitar nos trabalhos de Humberto Mauro e de Glauber Rocha, nossos suportes no cinema brasileiro de formação e de ideias, de contradições e antagonismos que as múltiplas significações elevam. Cada um deles com sua especificidade e na sua abrangência que só o cinema pode permitir e sugerir, numa elevação de gêneros, tempos, entendimentos e formalismos.

Não resta a menor dúvida de que ao sermos vítimas de um processo civilizatório, existem outros aspectos que podemos até aproveitar como superação. Porque foi deixado aberto um campo de linguagem e de oportunidades num processo de descobertas de tempo e história, e de um passado que ainda nos assombra. Pela violência e a escravidão ainda tão presentes sob vários símbolos e aspecto que a política e a cultura vão dissimulando, material nada retratado em nossas obras culturais e, quando existe, sem a devida precisão.

Mas essa nossa presença no atraso e no progresso pode ser uma boa resposta como recuperação e oportunidade. Algo que a nossa arte ainda não negou, em Humberto Mauro e Glauber principalmente, como primitivismo, idealismo, performance e como um moderno revolucionário (em Glauber). Manifestações de um processo revolucionário da arte que, em condições como as nossas, dão-se para dentro (com consequências trágicas como na morte do cineasta). De qualquer forma, estão presentes em tais manifestações as possibilidades do avançar.

O Brasil parece estar tendo uma relação especial com o tempo, ao desafiar essa lógica que a razão impõe, distante da cognição como busca e procura, fora do eixo que a razão central determina. Estando nós mais conscientes de que todo colonizador se assemelha, e só se diferencia pela violência e pelo volume dos saques, como exorbitância e capacidade nas prepotências. Mais ou menos armados, não importa. E onde o saber nunca exorbita mas pode refletir. Como em nós no passado confronto histórico entre Portugal e Holanda. Esta, na reforma e no domínio do capitalismo inicial. E Portugal, na contrarreforma, atrasado, dependente do repasse dos saques como sobrevivência, permitiu-nos uma realidade concreta ainda muito presente como indecisões para uma melhor definição sobre nós e nossas possíveis descobertas.

Uma, a nossa grande descoberta, é a coragem (como a de Glauber), de expor e de subverter nossas fraquezas, nossas misérias e nosso desespero. E localizar, em sua inteireza, sem medo de suas demências e patologias como nesse delicado e ousado “Câncer”! Algo comparável à experiência dos jesuítas que, pressionados em sua origem, buscaram uma saída aqui entre nós, com os sete povos das missões. Experiência frustrada, como frustradas são as diferenças econômicas, políticas e culturais, até que possam se afinar ou se afinar.

O mundo de aprendizados e revelações ontológicas é muito amplo e pouco oportuno, o que nos cabe é descobrir e insistir, como arte, cinema e vontade. No cinema, Mauro e Glauber continuaram nossas maiores referências, superando o tempo e a realidade. Foram dois cineastas altamente competentes e distantes do udenismo farisaico de nossos mentores midiáticos do cinema de conciliação e entrega, que transformam o público em privado, como patrimônio de grupo.

Humberto Mauro foi um descobridor do descoberto. Com uma vontade além do idealismo. Redentora! O que Glauber Rocha desenvolveu e ampliou por outros meios e no enfrentamento das mesmas realidades. Domínio, dependência e submissão. E por tudo o que a globalização definiu como domínio dos meios de produção e de compensações pelas entregas, traição e delação. Por tudo o que a linguagem do cinema possibilita sob o domínio da burguesia e das subjetividades, onde tudo é possível, desde que abaixo do Equador. Como na Colônia!

Humberto Mauro se superava pelo sentido ontológico que imprimia ao próprio trabalho, em todos eles, e seus curta-metragens não nos deixam sem resposta para estas indagações. Como superação de si mesmo, passou a falar Tupi, e em seu rádio amador, ampliando comunicação e linguagem. Procurando ontologia. O mesmo que Glauber também andou fazendo, percorrendo o mundo para retornar ao mundo, o de “Câncer”. Nesse “Câncer”, a inventividade do choque e do lugar comum como nossa realidade. Um estupro do banal a nos estimular e fazer ser, como na TV e na mídia no dia a dia.

E como Glauber soube montar esses lances de dados. Na política, na poesia, no olhar e no ouvir. Nas imagens que amamos e que odiamos! Nossos paradoxos de entendimentos e desentendimentos. Glauber tentou uma inversão de Shakespeare pela linguagem irreverente em seu curta sobre a morte do pintor Di Cavalcanti, trepando no caixão para melhor enquadrar o morto. Era a síntese e erudição dialética da beleza do cineasta, a de rompimento com a realidade concreta, a de domínio e êxtase da burguesia. Verdadeiro discursivo Shakeasperiano!

Em “Câncer”, Glauber confunde e acelera a entropia, com realidade e ideologia, realismo e forma, super contextualizada para uma proximidade da loucura, onde tudo, quase se toca com o nada e desaparece nas presenças fúteis, banais e trágicas de nossa existência. Glauber, nesse filme, é a voz dos paradoxos, uma paráfrase, já que as imagens são superadas por ele, como cultura e despojamento, revestidos de audácia e de astúcia. Ele sabia que para fazer um filme assim era preciso coragem e vocação quase mediúnica! Porque só assim se tocam memórias que o tempo quer esquecer.

Mas a maior violência sobre as estruturas são culturais e subjetivas, subjacentes – aquelas que a burguesia impõe ao homem comum, pelo temor da ordem e do poder e pela submissão econômica hierarquizada, numa precisa destruição do andar de baixo. Sem apelo e sem retorno. Glauber tentou nos ajudar a nos descobrir. A descobrir nosso câncer, até agora, incurável! No hospital!

10/9/2011

Fonte: ViaPolítica/Os autores

“Câncer” – ficha técnica:
Ficção, longa-metragem, 16 mm, preto e branco. Rio de Janeiro/Roma, 1972, 950 metros, 86 minutos; Companhia Produtora: Mapa Filmes (Brasil); Distribuição: Embrafilme; Lançamento: 2 de setembro de 1982, São Paulo, Centro Cultural São Paulo; Coprodutores: Gianni Barcelloni, RAI - Radiotelevisione Italiana; Diretor: Glauber Rocha; Diretor de fotografia e câmara: Luis Carlos Saldanha; Som direto: José Antonio Ventura; Sincronização: Raul Garcia; Montadores: Tineca e Mireta; Laboratório de imagem: Líder Cine Laboratórios; Elenco: Odete Lara - mulher; Hugo Carvana - marginal Branco; Antonio Pitanga - marginal negro; Eduardo Coutinho - ativista; Rogério Duarte, Hélio Oiticica, José Medeiros, Luís Carlos Saldanha, Zelito Viana e o pessoal do morro da Mangueira, Rio de Janeiro.
(Fonte: Tempo Glauber)

Mais sobre Luiz Rosemberg Filho
rosemba1@gmail.com

Nenhum comentário: