quinta-feira, 29 de setembro de 2011

PIER PAOLO PASOLINI


Pasolini - A interseção entre cinema e música
Do asceticismo de Accattone para a fisicidade esplendorosa e decadente de Saló, o cinema de Pasolini parece completar uma via inversa àquela que Vittore Branca particulariza em Decameron, onde, na distância que há entre as proezas libertinas de Ser Ciappelletto à trágica santidade de Griselda, o pesquisador reconhece, em contra-tendência com parte da crítica, uma visão do mundo e uma poética de Boccaccio ainda que aos poucos unidas ao asceticismo medieval.
A primeira fase do cinema pasoliniano (o ciclo nacional-popular) apresenta-se como um estudo à época dos humildes e emergentes, centralizando–se sobre uma representação dos bairros subproletariados que Pasolini - com espírito laico hagiográfico e gramsciano - tende a sacralizar, beneficiando-se ainda da contribuição musical excelsa de Johann Sebastian Bach. Este ciclo abre-se com a paixão de Accattone e se fecha com aquela do O Evangelho Segundo São Mateus. Muitos são os temas e os motivos que unem as duas obras e seus protagonistas: cada isomorfismo vem com efeito claríssimo da comum utilização de algumas bachianas, e particularíssimamente o Coro final da “Matthäus Passion”.

A opção de se servir de Johann S. Bach como pilar sonoro dos seus primeiros filmes responde a um preciso gosto estético do autor: Bach era o musicista predileto de Pier Paolo Pasolini - tomou conhecimento da obra bachiana pela amiga Pina Kalz, quando ela refugiava-se em Casarsa della Delizia, nos anos da Segunda Guerra Mundial. Nos seus encontros habituais com Pina, tinham como trilha sonora as Sonatas e Partitas para violino. Pasolini permanece resplandecente, e a essas bachianas dedica alguns artigos: passagens autobiográficas em forma de diário, passagens dos seus primeiros romances e um ensaio da juventude.
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No Evangelho - à melodia de “Matthäus Passion” – flanqueia, sem medos ou preconceitos, a “Glória” da congolesa “Missa Luba” com a sua percussiva carnalidade: demonstração de uma religiosidade sublime, seleta, dolorosa, celestial ladeando tudo de uma religiosidade completamente terrena, expansiva e coreuta - fortemente popular. Assim, escapa à tentação de representar as cenas da paixão com um gosto estético de “quadro vivo”, e em relação ao seu primeiro filme, no qual predominava um senso visivo impresso para a fixidade, alternando o uso de grandes-ângulos e zooms pelo mesmo detalhe, planos fixos e câmera manual. Tudo isto ganha forma na versão marcadamente pasoliniana de mescla de estilos sublimes e estilos piscatórios, segundo análises de Erich Auerbach.
Apesar das significativas diferenças estilísticas entre os dois filmes, a observação musical (no caso o uso do coral bachiano) é certamente subtendida a uma função similar, traço de ligação intertextual que une as duas obras. Em Accattone, ele confronta então os “títulos” e acompanha diversas seqüências, até aquele final, com a morte de Accattone: destino já escrito que conclui o drama. Cada uma destas seqüências exprime de algum modo à idéia do inflamar deste fado trágico, deixando um sinal de sua passagem. O coro bachiano é portanto um real motivo condutor da morte, de um destino trágico já escrito – como específica Pasolini.
12/12/09
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Accattone demonstra-nos um filme hagiográfico, sui generis, despido das simples retóricas e revestido pelo véu sublime da grande tradição musical. Uma símile contaminação não é, portanto, apenas uma escolha estética, nem tão pouco um hábito intelectualístico. É ainda uma ação moral e política, de resgate social e humano.
Tradicionalmente representante de uma classe culta burguesa, a música sacra de Bach aplicada ao mundo popular, cria um ponto de ruptura com o convencionalismo descritivo imperante no cinema, que prognosticava músicas populares para basear cenas de pessoas comuns: músicas sacras para cenas religiosas, etc.. Expediente subversivo o qual Paolo Pasolini crera ser um dos principiais artifícios lingüísticos e de destruição dos clichês que investe o cinema de autores nos anos sessenta.Se a Paixão Segundo São Mateus constitui, sem dúvida, o elemento musical de maior interesse nos dois filmes, a presença de outros trechos bachianos oferece porém muitos instantes para estudos. Em Accattone os movimentos lentos dos dois primeiros Brandemburgueses contraponteiam a relação do protagonista com os personagens femininos do filme; os dois primeiros trechos comentam, de fato, todas as cenas na qual Accattone se encontra em companhia de Maddalena ou de Stella: a música, plácida mas de função pathos, dor e cor, com os instrumentos solistas (flauta, violino, oboé) que dialogam amavelmente, torna-se projeção sonora dos sentimentos dos protagonistas, sustentando à perfeição o ritmo das imagens. É exemplo, a seqüência do primeiro encontro com Stela, no espaço vazio das botelhas: o “andante” do “Segundo Brandemburguês” com o seu caráter triste e extremamente meditativo simboliza o amor de Accattone por Stella, contudo projeta ao mesmo tempo uma sombra trágica sobre esta relação.
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No Evangelho, a música de Bach não é uma constante quase exclusiva como em Accattone, mas flui perto a outras músicas de grande importância temática, com as quais coabita em perfeita harmonia. A importância das suas músicas consiste ainda em alternarem-se as outras presentes no grupo sonoro, nas intervenções trazidas pelo coro da “Matthäus Passion” e da “Glória” africana ou da “Donna nobis pacem” que segue imediatamente ao blues deslocado de Blind Wille Johnson. Maravilhosa é, por exemplo, a seqüência das tentações no deserto, e requintada é a maneira com a qual Pasolini utiliza o “Ricercare a sei” da Oferta Musical, na transcrição para orquestra de Webern. O pontilhismo que é a base da busca tímbrico-melódica de Webern responde a um critério de decomposição, de desagregação sonora, estabelecendo uma conexão simbólica com a paisagem vulcânica e lunar na qual Pasolini identifica o deserto evangélico, onde a câmera enquadra em campos longos e longínquos. Da mesma forma do trecho, aquele da fuga, onde os núcleos temáticos seguem sem mais se encontrar, reproduz além disso o diálogo conflitante entre o Cristo e o Diabo.

Ainda mais interessante é a utilização de “Dona nobis pacem” para a “Messa in si minore” bachiana. A seqüência é aquela da cura do aleijado, e a nota musical é primeiramente entregue ao blues do significativo título “Dark Was the Night” de Blind Willie Johnson. No instante em que o homem, enquadrado pelas costas, lança as muletas, solenemente inicia a música de Bach, para dar anunciação do milagre. Para um estilo visual limítrofe, construído por subtração, faz de contraponto uma música a qual narra mais, que difunde a mensagem, que produz um “êxtase” nas imagens: usando um termo querido por Pasolini, construindo um nexo emotivo e narrativo.
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No cinema pasoliniano, em alguns casos (como na seqüência assim descrita), a música (em particular a de Bach) é um dos traços para a singularização de um estilo transcendental, assim como teorizou Paul Schrader. Por tentar representar o Transcendental, e as suas manifestações, o cinema clássico (principalmente o holliwoodiano) sempre se serviu de estratégias imanentes, efeitos especiais e espetaculares. Autores como Yasajiro Ozu, Robert Bresson, Carl Dreyer puseram porém em ação uma de-espetaculosidade, persuasivos que o não- dizer, o não-mostrar são mais válidos. Para Pier Paolo Pasolini sempre em uma ótica de contaminação dos estilos, a vida cotidiana pobre e miserável é composta de pequenos acontecimentos ao modo sacro às suas formas sacras, de hierofanias."
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Veja o texto completo de autoria de:
Andréa Santos

Tradutora, professora de Literatura, pesquisadora de literatura americana e escritores "afro-americanos". Publicou entre outros, Imagens Femininas Negras em Paraíso , de Toni Morrison.(Ed. Fasa, 2000).
avellaneda_santome@hotmail.com
produzido em maio/junho de 2005:
http://www.revistaetcetera.com.br/18/pasolini/p4.htmORKUT COMUNIDADE PIER PAOLO PASOLINI

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