PRESSUPOSTOS
PARA ANÁLISES DE TRÊS FILMES BRASILEIROS
Guido
Bilharinho
Filmografias
Complementares
Na diretriz de preocupação (e
ocupação) com o relacionamento humano, especificamente, o amoroso, Válter Hugo
Curi (São Paulo/SP, 1929-2003), prossegue em seu segundo filme, Estranho Encontro (1958), a vasta
filmografia (para os padrões brasileiros), que irá desenvolver pelas décadas
seguintes.
Com pertinácia, insistência e
coerência, Curi realiza até 1998 mais de 20 (vinte) filmes de qualidades
desiguais, porém, em que avulta Noite
Vazia (1964).
Por sinal, paralelamente a
ele, também estreante nos anos 50, mas, pautando obra em registro diverso, mas
não oposto, como equivocadamente sempre se colocou no quadro de exacerbação
ideológica que caracterizou as décadas do pós-guerra, Nélson Pereira dos Santos
também irá construir considerável filmografia.
Curi, diferentemente de
Nélson, não se dedica à elaboração de conflitos interclasses e concernentes à
condição e situação sócio-econômica de suas personagens.
Opta por fixar-lhes o
comportamento emocional e/ou o relacionamento amoroso.
O ser humano é composto, como
se sabe, de feixe de emoções, condicionantes, pulsões e compulsões variadas,
bipartindo-se entre condição e situação econômico-social (luta pela
sobrevivência em quadro infra-estrutural organizado em sociedade dividida em
classes) e conformação intelecto-subjetiva, complexamente formada.
Como dito, Nélson preocupa-se
principalmente com aquela e Curi com esta, complementando-se e não se opondo,
pois.
Em Estranho Encontro, com argumento e roteiro também
seus, Curi aplica, em trama inteligentemente construída, tratamento formal
requintado, em que a consciência estética e o cuidado elaborativo patenteiam-se
desde as cenas iniciais, que, mutatis mutandis,
evocam às do filme A Morte Num Beijo
(Kiss Me Deadly, EE.UU., 1955), de Robert Aldrich.
Julgamento
da Obra de Arte
A análise e o julgamento da
obra de arte não pressupõem sua contextualização espácio-temporal e o mais que
isso implica de condicionantes e relativizações.
Tais procedimentos críticos
não se balizam (e nem se limitam) por esses fatores, bastando-se a si mesmos
com fulcro na obra, no resultado obtido pelo autor e advindo de todo o processo
elaborativo.
Muito menos orienta-se esse
exame por parâmetros ideológicos ou de qualquer outra natureza que não seja,
apenas e unicamente, o estético e, na ficção, também a propriedade do enfoque
da natureza humana.
Nesse mecanismo intelectual
não interessam nem mesmo (com igual ou mais razão) origem, motivações e
objetivos que direcionaram e condicionaram o autor.
Todos esses fatores são, como
se sabe, exteriores e alheios à arte.
À evidência que se pode
analisar e julgar a produção artística sob qualquer outro ponto de vista,
procurando observar, por exemplo, se ela atingiu as finalidades artísticas (se
existirem) que moveram o autor. Contudo, tal empreendimento nada tem a ver com
julgamento de seu valor como produto resultante da atividade
intelectual-artística.
A preceituação ora expendida
visa fixar (ou lembrar) questões óbvias na concepção moderna da arte e da
crítica da arte.
Aplica-se, pois, urbe et orbe, indistintamente.
Por isso, não vem à baila, a
não ser como mera curiosidade, o papel que a obra de arte representou em seu tempo
no contexto ideológico-político. Aliás, tal circunstância só serve para
obnubilar análises e empanar julgamentos, obscurecendo e comprometendo a
isenção e a exação que devem presidir o mecanismo crítico avaliativo.
Ao se comentar o filme Ravina (1958), de Rubem Biáfora (São
Paulo/SP, 1922-1996), com mais razão ainda devem ser afastadas quaisquer conotações
trazidas à memória pela significativa militância crítica e perfilhada tendência
criativa do cineasta.
Interessa, pois e apenas, o
resultado, ou seja, a obra que legou.
Ravina é o marco inaugural dessa filmografia, composta ainda de O Quarto (1967) e de A Casa das Tentações (1975), um filme,
portanto, por década.
Verdade
e Arte
Entre os intelectuais de
esquerda lavrou – e ainda lavra – o equívoco de subordinar a expressão
artística à mensagem social, política e filosófica. A obra, em consequência,
não passaria, nesses casos, de veículo ou instrumental ideológico,
sacrificando-se (quando qualificado o autor) ou não atingindo (na hipótese de incompetência)
o nível artístico.
Contudo, não é a escolha do
tema ou a orientação que se lhe imprime os responsáveis por esse descaminho ou
frustração.
Ao contrário do que
geralmente se pensa e se propala, o assunto e sua diretriz são neutros do ponto
de vista artístico, independendo do posicionamento político-ideológico e social
do autor, não importando sua condição, posição, atitude ou conduta e
correspondente objetivo religioso, social, político e ideológico. Quaisquer
sejam, o que conta e vai ser aferido é o valor estético da realização, isto é,
conforme Hegel, sua concepção e expressão, traduzidas em profundidade e
propriedade de conteúdo e criatividade formal.
Por isso, pode-se ter grande
poema tematizando simples árvore de beira da estrada e poema sem nenhum valor
abordando o destino da humanidade.
O caso do filme Os Fuzis
(1963), de Rui Guerra (Maputo/Moçambique, 1931-), é exemplar de como se reúnem
e são sintetizadas intenção engajada e forma artística, sem subordinação desta
àquela, como convém.
À
evidência que, além disso, é indispensável que o autor seja artista, tenha
talento, consciência e informação estética acompanhados de persistente
exercício elaborativo.
Os Fuzis alia visão,
posicionamento e crítica social com alto grau de realização cinematográfica, na
utilização adequada e vigorosa dos meios expressionais da arte, do que decorre
forte conteúdo humano e social expresso em apropriada construção formal.
(do
livro O Cinema Brasileiro Nos Anos 50 e
60, editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em
2009-www.institutotriangulino.wordpress.com)
Foto anexa de cena de Os Fuzis.
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Guido
Bilharinho é advogado atuante em Uberaba e editor da revista internacional de
poesia Dimensão de 1980 a 2000, sendo ainda
autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional.
Publicação
autorizada pelo autor)
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