A Carne Transposta Para o Verbo e Verso
Rubens Shirassu Júnior
Seguindo
o conselho de Drummond, mais do que na emoção, Whisner Fraga procura a
poesia na carne das próprias palavras da Bíblia e, dentro delas, nas
letras que a compõem antes do verbo, compondo estes versos da celebração
de um período de sua vida. O Livro da Carne: livro das palavras
nuas, letras franciscanamente despojadas que se agrupam em palavras
medidas, sonoras, capazes de retomar jogos e brincadeiras, de reinventar
a infância mineira dividida em três fases: a inocência, a descoberta e o
desgosto, com o despertar da consciência e do encontro. A matéria
torna-se fortemente expressiva e marcante na sua vida, enquanto a
composição revela um mundo sitiado, regrado por leis repressivas e
povoado pelos dogmas, o fundamentalismo, o ecumenismo e o maniqueísmo
religioso pelas imagens surrealistas, vingativas e fatalistas, além das
costumeiras contradições encontradas em doutrinas religiosas ou
filosóficas. Mas é sempre desse tempo, dessa fase sem lirismo,
romantismo e saudosismo piegas, diferente de um Marcel Proust e suas
reminiscências sentimentais de “Em Busca do Tempo Perdido”, mas
semelhante na unidade temática como faz João Cabral de Mello Neto.
Os
poemas que compõem o livro expressam a condição e a educação
sentimental do menino institucionalizado, imerso em um mundo opaco,
governado por normas morais que cultivam o medo, a culpa que o alienam e
oprimem. De uma maneira, Fraga mostra que o universo está carregado de
mitos seculares e enraizados no gene que nos lançam na claustrofobia
sufocante de uma sociedade que cobra as tarefas-padrão inumanas. Um
universo poético em que os tradicionais conceitos de culpabilidade e
inocência valem menos do que o próprio funcionamento da lei moral –
indiscernível, relativa, acima da vontade e do entendimento dos homens.
Podemos interpretar O Livro da Carne
vendo-o como uma alegoria do milenar pensamento de controle, em que
todos estão submetidos a uma lógica cega. Whisner Fraga é poeta cônscio
do seu ofício de plasmador de signos, mitos e ritos. Se a sua obra
ficasse no plano projetivo das angústias e, no seu desafogo, por certo
não teria ultrapassado o limiar da poesia de confidência e evasão que
marcou quase toda a prosa e a poesia romântica. Mas ela vai além da
projeção: tematiza os escuros desvãos da memória em torno de ambientes,
fantasias, brincadeiras, jogos desde a infância até a adolescência,
personagens e molda-se no nível da palavra descritiva de imagens
surreais, fantásticas ou absurdas.
A
distância que vai da vida à arte é palmilhada pelo estilista rigoroso
que formou seus ideais artísticos à sombra do construtivismo de João
Cabral de Mello Neto, ora recai sobre as situações vividas, sentidas e
imaginárias. O poeta experimenta verdadeiro duelo com os abismos das
situações grosseiras tão frequentes nas fases de infância,
pré-adolescência e adolescência, entre as imagens do ousado libertino,
transgressivo e o comedido ou regrado religioso.
Jogo da Sinceridade
Whisner Fraga faz o jogo da sinceridade e manipula a eloquência escrita como arma do instinto. A religião é a sombra de “O Livro da Carne”
e a representação mais bem realizada do autoritarismo, da dúvida
confusa como instituição está relacionada aos tabus. Ela entra nos
nervos do subconsciente do poeta, que através da linguagem poética,
camufladamente, usa de uma precisão talentosa de carpinteiro, o poeta
revela suas próprias cismas, sufocadas pela filosofia cristã e pela
sociedade. Se faltou coragem a Fraga para matá-la dentro de si,
parafraseando Freud: “a arte é uma das formas de sublimação dos
recalques da libido” sobrou o que chama de “princípio de prazer”,para a
satisfação dos impulsos primários transfigurados pelo autor em
manifestação poética de superação.
*Poeta, Ficcionista e Crítico Literário
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