sexta-feira, 6 de junho de 2008
CECÍLIA FERREIRA
Apocalipse
Foi bem diferente naquele dia,
apesar da muita réstia de sol
infiltrada pela veneziana
não me espreguicei. As juntas doíam
e sob o cobertor o frio teimava.
Lentamente naquele dia
afastei da minha mente
cada dor que me acudia,
fosse ela egoísta,
fosse ela uma agonia.
Sob aquele cobertor,
não me levantei de um salto.
Em pensamentos e vontades
eu me despia
daquelas justas medidas
como alguém que se alivia
pelo retirar de roupas
que são feitas de suplex:
“Não vou dizer à fulana
as verdades que merece,
não vou dar mais bola aos juros
ou ao Efe-agá-cê,
não vou mais me importar
com o Lula e seu Petê,
com os painéis do senado,
com Jader ou com Kosovo,
com o vestido brocado
com as traças e seus troços.
Deixa eu troçar dos destroços
e destas unhas quebradas,
dos brancos nestes cabelos,
desta arcada desdentada..
Não quero sofrer por dores
de pais que matam seus filhos
de mães de filhos que matam,
da fome e de seus rastilhos
de pólvora que se alastram.
Não irei mais dar ouvidos
ao coração confrangido
que bate aqui neste peito
ou às bravatas intelectuais,
nem ligar pra humilhações,
segregações raciais,
para as vendas de armamentos,
dominações,
televisões,
religiões,
financiamentos,
o poder de ter poder
o poder de poder mais.
Lentamente naquele dia
afastei da minha mente
cada dor que me acudia,
fosse ela egoísta,
fosse ela uma agonia.
Então pus os pés no chão
e, entre o tapete do quarto e o piso
do banheiro, fiz o que nunca fiz:
dei meia volta,
ao armário
à procura de um presente
que um dia alguém me deu!
- e o que nunca apetecia,
de repente apeteceu –
olhei para a sapateira,
me abaixei
– ah, dificuldade –
e vesti, novinho em folha,
por muito antigo que fosse
o chinelinho encorpado
bem macio e agasalhado,
desejando assim a Paz,
não ao mundo
– não mecânica e irrefletidamente
qual qualquer entrevistado
quando quer impressionar –,
mas a mim,
a mim mesma.
A idade faz amar-se.
Lentamente naquele dia
afastei da minha mente
cada dor que me acudia,
fosse ela egoísta,
fosse ela uma agonia.
CECÍLIA FERREIRA/ARAÇATUBA/SP
TELA: salvador dali
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